Por quantas gerações a educação machista persiste? Quantas guerreiras ainda se veem no espelho como incapazes criaturas?
Há alguns anos quero escrever este texto, mas só agora foi possível a materialização dele em palavras, só agora sou capaz de soltá-lo ao mundo. Este texto é para exaltar as mulheres da minha família e mostrar a elas o quão importante são para mim.
Não escrevo aqui com a intenção de diminuir os homens da família. O fato é, para mim, as mulheres não são reconhecidas por sua importância, inclusive falo por mim, eu mesma nunca disse a elas (ao menos a maioria delas) o que escrevo aqui agora. Quero que elas percebam o quanto são importantes e o quão melhores elas são do que aquilo que elas se julgam ser. Mulheres fortes e incríveis que eu amo e admiro.
Nossas avós, nossas mãe e até mesmo algumas de nós tivemos uma formação bastante centrada no poder, força e superioridade da figura masculina. Algumas vezes isso aconteceu de maneira velada outras vezes explícita, às vezes com uma frequência grande, às vezes esporadicamente, mas aconteceu e infelizmente ainda acontece.
Acontece, acredito eu, porque muitas das mulheres das nossas famílias ainda não reconhecem esta semente do mal dentro de seus pensamentos e continuam a alimentá-la e por vezes a espalhar seus frutos. O caminho para combater esse machismo enraizado, é o conhecimento de tais pensamentos e o reconhecimento de nossas próprias personalidades, de nossas próprias capacidades, de nossa potência própria. Ninguém é melhor que ninguém, somos todos humanos.
A fotografia que abre esta publicação é do casamento da minha mãe, ela está no centro da foto, minha avó paterna, Aparecida (Cida), do lado esquerdo e minha avó materna Gessy do lado direito. É com elas que começarei este texto.
Minha avó Cida foi uma das pessoas mais alegres e risonhas que já conheci. Infelizmente não convivi muito com ela, pois morávamos em cidades diferentes e ela faleceu quando eu tinha 6 anos. Mas todos os momentos que me recordo são dela rindo, se divertindo com as próprias dificuldades e limitações. Cida tinha diabetes e sofreu algumas amputações por conta disso, mas nunca a vi ou ouvi reclamar por isso, reclamava as vezes por não poder comer o que queria.
Com os anos pude ver o quanto ela foi responsável pelo desenvolvimento e crescimento dos filhos, imprimiu neles essa leveza no viver, mesmo nos piores momentos. Nas situações de miséria Cida era capaz de tirar leite de pedra, e nas situações de confronto era capaz de tomar a frente e agir.
Acredito que o comportamento da minha avó fez com que minha tia Márcia (também já falecida) se tornasse a mulher forte, independente e corajosa que foi. Márcia tinha a felicidade da minha avó Cida, mas tinha o dobro da independência e da coragem, não se deixava abater pelos julgamentos alheios e seguia sempre em frente de cabeça erguida, ficando ao lado daqueles que amava.
Minha avó Gessy é uma grande guerreira, criou os três filhos praticamente sozinha, pois meu avô “abandonou o barco” quando os filhos ainda eram pré-adolescentes. Ela teve que trabalhar duro, minha mãe e meus tios também (na época um dos meus tios ainda era criança então a responsabilidade ficou mais centrada no meu tio mais velho).
Gessy nem ao menos pôde escolher uma carreira fora, pois quando foi para São Paulo trabalhar logo teve que voltar para cuidar dos pais, acabou conhecendo meu avô e se casando. Um casamento não muito feliz, que talvez tenha sido feito mais para sair de casa do que por amor.
O casamento acabou, os filhos cresceram e minha avó não se casou mais. Talvez porque tenha traumatizado, talvez porque tenha se apegado muito ao julgamento alheio. O fato é que apesar de ser uma grande guerreira, apesar de ter suportado muitas barras sozinha para criar os filhos Gessy não foi capaz de se libertar das amarras mentais e dos grilhões que a sociedade a colocou.
Se julgou e condenou por estar separada. Guardou a mágoa num potinho e não se permitiu mais viver plenamente. Mal sabe ela que por tudo que passou, pela resistência e força que teve todos esses anos tornou-se muito melhor e maior que qualquer homem que tenha estado em sua vida, seja no papel de pai, marido, irmão ou amigo. Gessy poderia ter colocado todos no chinelo, mas não reconheceu e ainda não reconhece a própria força, deixando-se submeter e considerando sempre os homens melhores que ela, e melhores que as mulheres em geral.
Minha mãe, Sônia, é para mim um exemplo de bondade e força, sempre procurou fazer o bem a qualquer pessoa que passasse em sua vida, mesmo que isso representasse perigo ou desgaste para a família. Forte e decidida, minha mãe foi o centro da casa e a cola que ligava a família por muito tempo. Após 36 anos de um casamento ruim (talvez no começo tenha sido bom), tomou coragem e separou-se, foi julgada por toda a família, inclusive pelas mulheres, poucos ficaram ao seu lado. E coube à mim chamar a atenção da minha avó para a realidade de que ela era a filha, e era ao lado dela que ela deveria ficar, esse foi um momento bastante difícil para todas nós.
O jeito gentil, servil e submisso da minha avó moldou minha mãe por anos, e quando ela finalmente se libertou foi difícil para minha avó, o que é totalmente compreensível, pois minha avó viveu sozinha e julgada quase a vida toda e não queria o mesmo para a filha. Minha mãe, no entanto, ignorou o falatório e seguiu em frente.
Hoje, vejo que ela tem ainda muito da educação machista que recebeu, mas já eliminou muita coisa, já superou muita coisa e melhorou muito seu comportamento. Creio que o que ela passou com o divórcio a tornou mais atenta à estas questões, a fez refletir sobre tudo o que sofreu por conta de posicionamentos e pensamentos machistas dos homens, e das mulheres a sua volta e tornou mais empática com outras mulheres, inclusive dentro da própria família[1].
Uma das mulheres mais incríveis deste texto, e alguém que me serve de inspiração todos os dias é minha Tia Geni, que criatura extraordinária!
Criada em uma família extremamente machista, ela conseguiu crescer e criar-se completamente avessa a isso. Saiu de casa cedo, sem casar, o que era visto, e ainda é visto por algumas pessoas como um péssimo comportamento. Foi pra São Paulo, morou em uma república, trabalhou, construiu uma carreira e casou com um homem divorciado e com filhos. Ah, além de tudo isso, Geni não quis ter filhos.
Meu Deus! Quantos paradigmas quebrados por uma só pessoa. Imagino o quão dura tenha sido essa trajetória e a quantidade de asneiras que ela deve ter ouvido ao longo da vida. Mas nada a parou, nada a segurou, ela foi adiante e construiu sua vida como quis.
A pressão de minha bisavó e dos irmãos fez com que a tia-avó Geni voltasse para o interior para cuidar da mãe, isso foi um baque muito grande, do qual ela levou alguns anos pra superar. Mas seguiu a vida, cuidou da minha bisavó até o final, tornou-se um exemplo entre as irmãs, as quais vive socorrendo. Hoje, segue firme e forte cuidando do marido e se cuidando também.
Louca, grossa, mal-educada, nada disso, para mim, Geni é um excelente exemplo de alguém que pegou as rédeas da vida pra si e seguiu o caminho que quis, alguém que acreditou no próprio potencial e não se deixou abalar pelo julgamento alheio. Alguém forte o suficiente para me servir de inspiração e encher de orgulho.
Mais uma mulher da família que merece estar aqui é minha Tia Gema, não convivi muito com ela, pois morávamos em cidades diferentes e ela pouco ia para o interior. Não sei dizer o quanto há nela de pensamento machista, é provável que haja um pouco. Mas o que me faz admirá-la é a força que teve, e têm, para se posicionar. Minha tia nunca deixa de se posicionar quando uma situação a envolve, e é simples e clara em seus posicionamentos.
Lembro-me de ouvir pessoas da família dizendo que ela não gostava da família, que não se misturava, hoje vejo quão sábia foi sua decisão de não se “misturar” e de não mudar para o interior. Não é porque é família que precisamos querer conviver todos os dias, e minha tia já sabia isso há anos, eu, no entanto, só descobri recentemente.
Por vezes uma menor convivência é o que vai levar a uma maior longevidade da relação, enquanto “se misturar” pode fazer, como dizem no interior, o caldo azedar.
Sábia Gema, manteve-se estrategicamente distante, mas nunca ausente, sempre que necessário estava lá, e sempre que questionada se posicionou. Soube fazer suas escolhas e seguir altiva, com determinação, cada uma delas.
Outra figura que merece destaque no grupo de mulheres da família é minha tia Marisa, sempre alegre e cheia de esperança minha tia pode ser mencionada aqui como uma criatura de luz. Durante um período de sua vida passou por maus-bocados, foi julgada e condenada pela família, inclusive pelas mulheres. Pagou seus “crimes” mas continua, vira e mexe, sendo alvo de comentários hostis. E o que ela fez com isso? Piada. Minha tia é daquelas mulheres que transforma a tragédia em comédia e segue o baile lindamente, talvez isso seja o que mais incomode as pessoas.
Dona de um humor incrível e uma capacidade única de deixar os ambientes mais leves. Marisa segue transformando lágrimas em isotônico, mesmo em seus dias mais difíceis. É claramente a cola e a força de sua família. Se ela carrega ainda o pensamento machista de sua criação é em uma pequena dose.
Na ala mais jovem da família temos minha irmã Tatiana, minha prima Mariana, minha prima Renata e eu.
Mariana tem a força, altivez e determinação da minha tia Gema. Não vejo nela nenhum pensamento ou comportamento machista, talvez haja ainda, mas, com certeza, é ainda menos do que há na minha tia. Se ela sofre ou sofreu com algo relacionado ao tema, tenho certeza que sim, mas com a força que tem pegou o problema na unha e resolveu ali mesmo.
Renata parece não ter recebido nenhuma dose de machismo, e se recebeu afogou na piscina. Tenho certeza que ela sofre com isso, e que muitas vezes é cobrada ou julgada por bobagens e caprichos da sociedade, mas segue firme e forme traçando seus caminhos e portando-se de forma autêntica, como todo ser deve portar-se e não como a sociedade quer que nos portemos.
Minha irmã já chegou a ser considerada uma versão mais nova da Geni. Tati não quebrou paradigmas, ela os devorou e depois vomitou todos eles, dando-os uma nova forma. Sem qualquer pudor ou medo arriscou-se, quebrou a cara por diversas vezes, ganhou, perdeu, chorou e sorriu, construiu sua vida de acordo com seus ideais e jamais deixou que seus ideais fossem trocados por outros só porque agradaria alguém. A segunda Geni viveu e vive aquilo que acredita, e vai muito bem, obrigada.
Quanto a mim, pareço estar ganhando o posto de terceira Geni. Que sorte a minha!
Amo vocês todas! Gessy, Geni, Cida, Márcia, Sônia, Marisa, Gema, Mariana, Renata e Tatiana.
* Segundo a minha visão, é claro. Obviamente nem todas as mulheres da família estão aqui, fica pra próxima ;)
[1] Vale ressaltar aqui que a amizade e a cumplicidade da minha mãe e da minha tia Marisa sempre me foi um exemplo, as duas sempre se defenderam e se apoiaram quanto necessário, acredito que esta amizade é uma das coisas que as ajudou a suportar os momentos mais difíceis que tiveram em suas famílias.
Gostei muito!!!!
Lindo texto, quando decide fica simplesmente fantástica..
🥺🥺🥺🥺 vc é maravilhosa , te amo.
Uau! Mulheres fortes e inspiradoras!
Quero me tornar uma futura dona Geni também.❤️